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É possível dizer que a filantropia expressa as chamadas características femininas?

A filantropia feminina está mudando o sistema - ou apenas a ótica? Um olhar fundamentado sobre gênero e doações

May 2025
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Este artigo o convida para um espaço de reflexão em vez de prescrição. Exploramos como a filantropia se relaciona com a construção social do gênero feminino - não para oferecer conclusões simples, mas para manter a complexidade com cuidado. Para alguns leitores, as questões que levantamos podem parecer abstratas ou incômodas. Isso é intencional. Nessas tensões, encontramos a possibilidade de uma transformação mais profunda.

A filantropia está em um momento de questionamento. O campo tem abraçado cada vez mais os apelos para mudar o poder, centralizar a experiência vivida e priorizar formas relacionais de trabalho - qualidades geralmente associadas ao feminino. Isso pode parecer um sinal óbvio de progresso. Mas vamos examinar mais de perto. Por um lado, essas qualidades oferecem alternativas aos modos dominantes e extrativistas de doação e organização. Por outro lado, o diálogo em torno desses valores “feministas” também pode reproduzir expectativas de gênero (e racializadas) que colocam as mulheres, especialmente as mulheres de cor, como cuidadoras naturais, curandeiras e referências morais, sem transformar as lógicas mais profundas do patriarcado ou da colonialidade.

Não estamos aqui para rejeitar a virada em direção ao cuidado e à relacionalidade. Em vez disso, fazemos uma pergunta mais profunda: quem é visto como um doador legítimo em contextos filantrópicos? Que tipos de trabalho e valor se tornam visíveis - e o que permanece invisível?

Quando comemoramos a ascensão das mulheres na filantropia, estamos ampliando sua agência - ou apenas reforçando papéis já conhecidos com um novo brilho? O brilho pode celebrar a representação sem redistribuir o poder e abraçar a linguagem da empatia sem desafiar as estruturas da desigualdade. Em um campo moldado por séculos de extração e hierarquia, a transformação não pode ser meramente decorativa.

Expressão ou imposição? Revisitando o feminino na filantropia

A filantropia - entendida como o ato de nutrir o bem-estar coletivo por meio do compartilhamento de recursos, tempo ou energia - foi historicamente enquadrada como uma extensão do papel social da mulher nas sociedades patriarcais. Esse enquadramento posiciona o cuidado e a generosidade como traços “naturais” da feminilidade.

De fato, dos círculos de caridade do século XIX às transformadoras doadoras de hoje, as mulheres têm desempenhado um papel vital na construção de redes de apoio e no avanço da mudança social. E muitos dos valores tradicionalmente associados à feminilidade moldaram os esforços filantrópicos. Figuras como Jane Addams e Madame C.J. Walker, nos Estados Unidos, e Bertha Lutz e Ruth Cardoso, no Brasil, foram pioneiras no trabalho filantrópico baseado na defesa de direitos. Hoje, mulheres como Melinda Gates, Oprah Winfrey, Mackenzie Scott, Sueli Carneiro, Célia Xakriabá e Neca Setúbal levam adiante esse legado por meio do ativismo e da liderança filantrópica.

Muitas vezes, sua filantropia foi mais do que um gesto de generosidade, mas uma prática de resistência, uma forma de recuperar o poder e uma estratégia para reimaginar sistemas.

Ainda assim, devemos perguntar: a participação das mulheres na filantropia é uma expressão genuína do ser ou uma continuação dos papéis de gênero impostos?

A resposta está em um exame mais profundo do trabalho filantrópico das mulheres. Para muitas mulheres, a filantropia se torna uma forma de consolidar sua influência nos sistemas existentes. Para outras, ela se torna um veículo para a mudança estrutural que elas querem ver no mundo. De qualquer forma, a filantropia feminina não é meramente caritativa; ela muitas vezes reflete compromissos políticos, visões de justiça e uma redefinição da ação pública.

Portanto, surge um desafio quando tentamos articular a conexão entre a filantropia e o feminino.

Os sistemas sociais e econômicos há muito tempo definem o feminino como pertencente às mulheres, atribuindo-lhe um conjunto específico de valores: empatia, colaboração, intuição, cuidado e receptividade, e muitas vezes visto como secundário ou com necessidade de gerenciamento. O masculino está ligado à racionalidade, à ciência e à liderança. Precisamos desconstruir essas ideias universais. 

No entanto, à medida que a filantropia se torna mais estratégica, ela também é cada vez mais moldada por suposições sexistas, continuando a subestimar as características associadas à feminilidade - sugerindo que a emoção e o relacionamento são passivos em vez de ativos na tomada de decisões.

Mesmo em um setor em que as mulheres estão muito presentes, elas geralmente enfrentam barreiras para influenciar. A paridade de gênero ainda está longe de ser alcançada. No Brasil, os conselhos de administração continuam predominantemente masculinos, controlando mais de 88% dos recursos financeiros. As disparidades raciais são ainda mais acentuadas.

Portanto, a luta pela equidade na filantropia não se refere apenas a quem se beneficia dela, mas também quem molda sua visão. A inclusão não é suficiente. Sem transformação estrutural, a representação corre o risco de reforçar as hierarquias existentes sob o pretexto de progresso.

Filantropia feminista: Práticas e possibilidades

A filantropia feminista, ainda emergente no Brasil, não se limita a convidar mais mulheres para os sistemas existentes. Ela busca reconfigurar totalmente esses sistemas. Ela critica os fundamentos patriarcais e extrativistas do capitalismo e visa a redistribuir o poder.

Iniciativas internacionais como Frida Fund, Mama Cash e AWID apoiam não apenas doações, mas transformação - financiando mudanças nas políticas públicas e movimentos sociais que defendem os direitos das mulheres. No Brasil, o Fundo ELAS+, o Instituto Marielle Franco e o Fundo Agbara canalizam recursos para mulheres negras, indígenas e LGBTQIA+, expandindo não apenas o acesso, mas a própria definição do que a filantropia pode ser.

No entanto, nenhuma organização está imune aos sistemas que busca romper. Uma lente feminista não se traduz automaticamente em uma prática feminista. Assim como acontece com os esforços antirracistas, sem uma profunda capacidade de reflexão, as boas intenções ainda podem reproduzir padrões prejudiciais.

A transformação exige trabalho interno e externo. Exige que percebamos como o pensamento moderno moldou tanto a forma como damos quanto a forma como governamos. E exige novas formas de liderança que combinem amor e estratégia, intuição e eficácia - não como opostos, mas como companheiros necessários.

Um futuro de reimaginação generosa

Nos próximos anos, estima-se que 30 trilhões de dólares dos EUA passarão para as mãos das mulheres. Essa transição tem um potencial profundo.

Mas para que ela traga mudanças reais, precisamos mais do que redistribuição. Precisamos reimaginar um campo filantrópico que honre a complexidade. Que abrace o cuidado e a lógica, a estratégia e a ternura. Que se recuse a reduzir a generosidade à caridade ou o valor das mulheres ao desempenho das normas masculinas.

A partir dessa base, a doação pode se tornar não apenas um ato de compartilhamento de recursos, mas um compromisso coletivo de viver, se relacionar e co-florescer de maneiras diferentes.

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